PLATAFORMA DO GOVERNO APONTAVA RS COM BAIXO RISCO PARA INUNDAÇÕES, ENXURRADAS E ALAGAMENTOS

OG – 18.5.24

Hoje com quase 80 mil pessoas em abrigos públicos devido às chuvas recentes, o Rio Grande do Sul aparece na plataforma Adapta Brasil, lançada em 2020 e gerida pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), como uma região com baixo risco para inundações, enxurradas e alagamentos. O estado tem índice de 0,32 nessa classificação, em uma escala que vai até 1. A plataforma não é usada para gerar alertas, mas serve de parâmetro para gestores sobre a necessidade de medidas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas.

A capital Porto Alegre, debaixo d’água há mais de uma semana, aparece com baixo índice de risco para alagamentos (0,26), embora apresente, na mesma plataforma, nível muito alto de ameaça para este tipo de evento diante das mudanças climáticas (0,82). Em outro indicador da plataforma, de vulnerabilidade, que leva em conta a suscetibilidade da população diante desses riscos, a cidade também apresenta índice muito baixo, de apenas 0,03.

Há outras cidades em que a realidade não bate com os dados da Adapta Brasil. Um exemplo é Bento Gonçalves, com índice de risco para enchentes, inundações e enxurradas “muito baixo”, de 0,11. Lajeado, outro município tomado pelas águas, tem índice de risco médio para este tipo de evento climático (0,47), mas sua vulnerabilidade também é classificada como muito baixa (0,11).

Dois outros municípios gravemente afetados pela tragédia causada estão classificados como de alto risco. Um deles é Eldorado do Sul, que teve 100% da área urbana atingida pela enchente. Seu índice de vulnerabilidade, porém, é apontado como baixo (0,30). Canoas também apresenta risco alto (0,67), mas a vulnerabilidade é considerada baixa (0,21) e a capacidade adaptativa, alta (0,72).

Daniela Stump, professora do MBA ESG e Impacto da Trevisan Escola de Negócios, destaca outro indicador da plataforma, que é o de sensibilidade. Ele indica o grau em que um sistema socioecológico é potencialmente afetado ou modificado por desastre geo-hidrológico. Das cinco cidades avaliadas, quatro apresentam índice baixo ou muito baixo (Porto Alegre, Canoas, Bento Gonçalves e Lajeado). Apenas Eldorado do Sul aparece com índice médio.

— É um contrassenso que Canoas, por exemplo, apresente índice de vulnerabilidade baixo. O comportamento hidrológico é difícil de prever, mas a plataforma não indicou o quanto a população estaria vulnerável — diz ela.

Márcio Rojas, coordenador-geral de Ciência do Clima do MCTI, afirma que o volume de chuvas no Rio Grande do Sul foi impressionante, bem mais alto do que o esperado por estudos climáticos.

— Mas estamos vendo que os eventos estão ficando mais extremos e intensos, por isso, não podemos dizer que (a enchente no Rio Grande do Sul) é uma surpresa — diz Rojas.

Para ele, o principal da plataforma é o indicador de “ameaça” de eventos climáticos, um dos que compõem o índice de vulnerabilidade, que inclui também informações como adequação de domicílios, faixa etária e educacional da população, infraestrutura do município, saneamento e mobilidade.

Na prática, porém, a situação da capital gaúcha e de outras cidades do Rio Grande do Sul mostra que a infraestrutura existente pouco faz diferença diante de eventos tão extremos. No fim das contas, tudo fica sob as águas e a população sofre independentemente de grau de instrução, por exemplo.

Rojas diz que gestores municipais estão sendo treinados para analisar os índices da plataforma. Mas admite que ter ou não saneamento básico não importa diante de um evento do porte do que ocorreu em Porto Alegre.

O coordenador admite que é difícil e complexo prever com precisão a intensidade de eventos extremos, mas informa que o supercomputador Tupã, usado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para operar com modelos climáticos, será substituído em breve por outro mais potente. O novo será capaz de processar mais informações e para um horizonte maior de tempo.

Mais 12 municípios no Cemaden

Regina Alvalá, diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), afirma que prever a quantidade de chuva que vai cair é mais complicado do que prever a temperatura, por exemplo. Ela lembra que em 2020 foi detectada a necessidade de ampliar a lista de municípios monitorados 24 horas por dia e sete dias por semana pelo órgão, mas só a partir de 2023, com a troca de governo, o projeto pode avançar — na gestão anterior, segundo a especialista, o tema não foi prioridade.

De acordo com Regina, 45 municípios gaúchos têm hoje monitoramento contínuo do Cemaden e, até o fim deste ano, mais 12 municípios integrarão a lista.

Regina alerta que, apesar das informações sobre aumento de eventos extremos, nenhum município brasileiro tem hoje um plano completo de adaptação às mudanças climáticas, que customize características de clima, econômicas e geográficas. Ela reconhece que é preciso investir em estudos mais detalhados, que indiquem, por exemplo, qual o limiar crítico de chuva ou acumulado capaz de detonar um deslizamento em áreas de risco, por exemplo. O custo de monitoramento e de detalhamento dos impactos, porém, é alto.

— Os municípios têm de ser ativos. Gestão de risco e desastres não é 100% problema da defesa civil — diz Regina.

A professora Daniela Stump afirma que o Brasil precisa investir em adaptação para as mudanças climáticas, não apenas em mitigação. Isso envolveria avaliar de que forma a população será afetada em cada município. E cabe ao governo federal, estados e municípios atuarem em conjunto e separadamente.

A professora Daniela defende que o Brasil invista em análises de risco mais claras e precisas, além de criar comitês de gestão de crise multidisciplinares em todas as esferas de governo, que atuem em eventos extremos. Os planos de ação devem ser feitos por município, com a participação das empresas de abastecimento de água e energia elétrica.

— A população tem de ser treinada para saber como agir. Crises geram pânico coletivo e cada agente tem de saber exatamente o que fazer e qual a ordem de prioridade — diz ela.

O que significa, segundo a plataforma Adapta Brasil:

Índice de Risco para alagamentos inundações e alagamentos — Risco de impacto das mudanças climáticas em sistemas socioecológicos, considerando a ameaça de desastres geo-hidrológicos de inundações, enxurradas e alagamentos

Vulnerabilidade — Vulnerabilidade da população aos impactos dos desastres geo-hidrológicos de inundações, enxurradas e alagamentos

Capacidade adaptativa — Capacidade do sistema socioecológico de se ajustar a possíveis desastres de inundações, enxurradas e alagamentos

OS PERIGOS DA POSTURA NEGACIONISTA

VALOR ECONÔMICO – 17.5.24 – Fernando Abrucio

Um mal vem se impondo de várias maneiras na realidade política brasileira: o negacionismo em suas múltiplas formas. Pensava-se que com o fim da pandemia, a derrota (re)eleitoral de Bolsonaro e o fracasso do golpe de 8 de janeiro, o país estaria livre dessa ameaça e voltaria a ter um debate mais racional e pluralista. Depois de quatro anos de obscurantismo, sonhava-se em ter todos os principais atores políticos comprometidos com a democracia e a civilidade. Ledo engano. Cresceram nos últimos meses o irracionalismo, a barbárie no comportamento público e a defesa de posições autoritárias e sectárias. É preciso denunciar e superar esse fenômeno, antes que as portas do futuro se fechem para o Brasil.

Hoje, o negacionismo não diz respeito apenas à vertente anticientífica que grassou no período da pandemia da covid-19. Ele se manifesta de cinco maneiras no Brasil atual. A primeira é a disseminação contínua de fake news como forma de organizar o debate público. A segunda é a negação da ciência e das evidências na discussão sobre políticas públicas, tendo como o exemplo mais cruel, porque está matando pessoas, a questão ambiental. A terceira é o posicionamento extremista contra o papel do Estado e das suas principais instituições, defendendo uma ordem em que uma sociedade quase anárquica resolveria todos os problemas coletivos. A quarta é o sectarismo religioso que luta contra o pluralismo de valores da vida moderna. Por fim, a democracia é posta em xeque, alimentando o espírito que quase gerou um golpe de Estado no país.

A lógica das fake news como forma de desvirtuar o debate público é o negacionismo originário. Ela tem como pressuposto a construção de uma “realidade alternativa”, como diriam os trumpistas, cujo propósito não é apenas negar os fatos em sua manifestação mais óbvia. Procura-se atingir a legitimidade dos principais meios de expressão do mundo moderno, como a imprensa e a universidade. É como se dissessem: há uma outra fonte realmente verdadeira que deve ser disseminada e defendida, presente sobretudo nas redes sociais. Nelas são desmascarados aqueles que oprimem o “homem comum” e suas crenças. Mentiras deslavadas transformam-se em revelação de uma verdade mais profunda.

Tal processo não é neutro nem natural. Embora milhões de pessoas participem desse jogo de disseminação de mentiras, há lideranças claras e formas disseminadoras muito bem-organizadas, com objetivo evidente de deslegitimar aquilo que pode ser chamado de sistema. Por trás da pretensa naturalidade desse modelo, há um projeto de poder e sociedade diferentes tanto da democracia quanto daquilo que Popper denominava de “sociedade aberta”. O pluralismo, a ciência, o jornalismo, a política democrática e os especialistas da burocracia governamental são inimigos que devem ser vencidos por uma nova verdade, homogênea e controlada por influenciadores extremistas que nunca se submeteriam ao contraditório democrático. O “Grande Irmão” é o ovo da serpente das fake news.

Há uma confusão recente neste debate. Alguns defendem que esse fenômeno é apenas uma expressão de posições diferentes de mundo. Porém, as fake news estão mais para o sujeito que anuncia mentirosamente a chegada do fogo num cinema lotado. Cria-se um fato em cima do que não existe, o que, evidentemente, não é uma “outra opinião”. O problema é que esse negacionismo mata pessoas, cria pânico e desarranjo social, deslegitima o sistema democrático e busca eliminar outras opiniões. Vale aqui a máxima de Popper: tolerar o intolerante é permitir a criação de um mundo norteado pela intolerância, cuja natureza é sempre autoritária.

O mundo dominado pelas fake news não pode acreditar na ciência. Mais do que isso: ela é sua inimiga. Daí que essa segunda forma de negacionismo luta ferozmente contra a utilização de evidências para se pensar políticas públicas. Foi assim no caso da tentativa de deslegitimação da vacina, como tem ocorrido também na discussão da questão ambiental. O resultado desse comportamento cego quanto à mudança climática já está rendendo desastres e mortes no país.

Embora os governos federal, estaduais e municipais, de vários partidos, estejam devendo em termos de efetividade de políticas públicas, a principal fonte do desequilíbrio ambiental são os que têm vencido o debate legislativo do país, especialmente no Congresso Nacional. Daqui para diante, toda vez que os congressistas aprovarem leis que podem piorar a situação climática, o certo seria lembrar o que está acontecendo agora no Rio Grande do Sul e responsabilizá-los por tais tragédias.

É preciso dizer que os líderes do negacionismo nas redes sociais, partidos políticos e no Congresso Nacional disseminam ideias que condenam o futuro dos nossos filhos e netos. Desmatamento na Amazônia e no Cerrado, barreiras para a demarcação de terras indígenas, uso desmedido de agrotóxico, incentivo à ocupação de áreas de encostas, urbanização que destrói áreas verdes, tudo isso é responsabilidade de negacionistas que, se vencerem o debate público, teremos mais eventos climáticos extremos, multiplicando mortes e destruição.

Os negacionistas estão indo além da cegueira deliberada contra a questão climática. Estão atrapalhando a ação de resgate e proteção dos atingidos pelo desastre no Rio Grande do Sul. Espalham mentiras cotidianamente, incentivam brigas entre pessoas que estão em território gaúcho, alimentam intrigas não importando se isso pode causar mais mortes ou dificultar o amparo dos desabrigados. Nessa cruel jornada pela confusão e desunião, o negacionismo tem aqui uma terceira manifestação: uma visão radical contra toda ação estatal e de seus agentes.

Não só os políticos adversários são criticados. As Forças Armadas passam por uma gigantesca campanha de difamação, com mentiras escancaradas. Ao destilarem ódio contra os militares que estão colocando em risco a própria vida para salvar outras pessoas, os negacionistas divorciaram-se de vez de todos os integrantes do Estado. Mesmo as polícias estaduais, que são geralmente reverenciadas pelo bolsonarismo, entraram na roda das fake news quando os negacionistas inventam histórias negativas sobre o papel dos brigadistas gaúchos. No fundo, estão defendendo uma visão quase anarquista de sociedade, presente no slogan “civil salva civil”, isto é, os agentes públicos não salvarão o Rio Grande do Sul – e nem o país.

Os estudos em administração pública e ciência política mostram que a resolução dos problemas coletivos mais importantes passa por formas de colaboração entre Estado, mercado e sociedade. Nenhum desses entes pode equacionar sozinho questões tão complexas como a do megadesastre ocorrido em terras gaúchas. É pura ideologia barata propor uma dicotomia irreconciliável entre a ação estatal e a parceria com voluntários e associações da sociedade civil. Pelo tamanho da tragédia, não seria possível, matematicamente, resolver esse problema sem atores governamentais que possuem recursos humanos e financeiros que nenhum outro ator coletivo tem.

É bem provável que os negacionistas estejam aqui querendo desmoralizar governos e os funcionários públicos para apagar o desastre da política bolsonarista contra a covid-19. Mas, além disso, alimentar uma visão antiestatista radical é uma forma de deslegitimar o sistema, a finalidade máxima dos negacionistas. Só que se essa visão fosse colocada em prática, haveria muito mais chances de o resultado ser o mundo de Mad Max, gerando a guerra de todos contra todos hobbesiana. E o caos seria o formato ideal para que o negacionismo implementasse um modelo totalitário.

O negacionismo também se organiza, numa quarta vertente, pela luta contra os ideais de uma sociedade moderna e pluralista. A sua manifestação mais perigosa é uma “khomeinização” da lógica política, ou seja, subordinar todas as esferas da vida social a uma visão única e sectária de religião. Se os negacionistas brasileiros continuarem nessa toada de sempre subordinar a leitura da realidade política e social à sua estrita moralidade religiosa, o Brasil poderá ter um futuro mais parecido com o Irã das últimas décadas, comandado por autoritários e sem espaço para a divergência e a diferença. É assustadora essa possibilidade, e deveríamos começar a pensar nela ao ouvir os discursos de Nikolas Ferreira e Michelle Bolsonaro.

O modelo negacionista desemboca, ao final, na tentativa de destruir a democracia. Não será possível tomar o poder e realizar o que o negacionismo promete sem derrubar todas as instituições que sustentam o regime democrático brasileiro, como o STF, o federalismo, as eleições livres, uma mídia independente e o próprio Congresso Nacional. Por isso espanta que congressistas não pertencentes à extrema direita aceitem conversar sobre a anistia geral e irrestrita a quem tentou o golpe de Estado no Brasil. Salvar os participantes e incentivadores do 8 de janeiro é negar os fatos e a defesa da democracia. A vitória do negacionismo é possível no atual cenário brasileiro. Caso isso ocorra, muitas mortes ocorrerão pela descrença na ciência, pela intolerância religiosa ou por meio do autoritarismo advindo de um líder bolsonarista. Parte dos democratas nega esse risco. Tomara que esse grupo esteja certo, porque o que está em jogo é o fortalecimento de uma política que pode destruir o país em todos os sentidos.

ATAFONA E O MAR QUE ENGOLE MINHA INFÂNCIA

OG – 17.5.24 – RUTH DE AQUINO

O vento sopra sempre. O sol é abrasador, como num deserto à beira-mar, o que torna a sombra das amendoeiras uma bênção. No balneário de Atafona, vila de pescadores de São João da Barra, na foz do rio Paraíba do Sul, passei os verões de minha infância e adolescência. Saía de Copacabana com os pais, pegava a barca e, ao fim da tarde, chegava a um pedaço de paraíso. Hoje, Atafona é o cenário da maior erosão costeira do Brasil: 14 quadras e 500 casas destruídas. Um milhão de metros quadrados.

Entre as casas já engolidas e outras em ruínas, estão muitas da numerosa família Aquino, de São João da Barra e Campos. Meus avós tiveram 23 filhos. Escolhíamos pela idade os primos mais amigos. Antigamente, a praia tinha dunas e um areal imenso, cansava chegar ao mar marrom e limpo das águas do rio. Andávamos a cavalo e de jipe na beira, às vezes atolávamos, felizes, fora do alcance paterno. Cajá-manga com sal. Suco de carambola. Doces de jaca. Chuviscos. Caranguejo comprado vivo na porta de casa.

Hoje, o mar avança cinco metros por ano sobre esse vilarejo de ruas de areia. O que era, para mim, uma paisagem de realismo mágico virou um panorama desolador. Os habitantes relutam em sair, mas recuam quando a água destrói os muros, sem saber se terão de recuar novamente – e se um dia Atafona será uma cidade-fantasma. Há restaurantes que já mudaram de local várias vezes, como o do Ricardinho, que serve um polvo memorável. Não é uma tragédia de perdas humanas como nas inundações. Porque a erosão é gradual. Previsível.

Atafona é um retrato de muitas de nossas mazelas. O descaso com as mudanças climáticas. A intervenção suicida do homem na Natureza. A falta crônica de planos de prevenção de desastres. A paralisia do poder público. Como a responsabilidade é compartilhada por município, estado e país, ninguém se sente responsável. É geral. O Rio Grande do Sul nos alarma também por isso.

Há diagnósticos claros de causas e soluções, mas nada se faz concretamente. Muita reunião, muito palavrório, muita promessa. Tudo engavetado ou protelado. Para “o futuro”. Ou para a próxima campanha eleitoral. Ou a próxima catástrofe. Prefeituras contratam novos especialistas e empresas, fazem novas licitações. Aprovam-se emendas, mas parlamentares somem na hora de honrar os recursos. Os planos se desatualizam nos escaninhos.

Em Atafona, a origem do avanço acelerado do Atlântico se deve às barragens no Paraíba do Sul, construídas nos anos 1980 para abastecer o Rio de Janeiro. O rio, enfraquecido e assoreado, parou de proteger as areias de Atafona.

Conversei com um geógrafo marinho, professor da UFF, com doutorado em geofísica, Eduardo Bulhões. “O maior transportador de areia para qualquer praia são os rios. O Paraíba do Sul, solicitado para abastecer a metrópole, indústrias e propriedades rurais, foi impedido de fazer seu trabalho natural, perdeu velocidade, potência”.

Há duas soluções possíveis para evitar o sumiço de Atafona. Uma é construir barreiras, o que se chama de “armar o litoral” com rochas e quebra-mar. A outra é a proposta de Bulhões: “Construir com a Natureza, bombeando areia de baixo do rio, por dutos, para a praia. Isso se chama de ‘engordamento’ ou ‘preenchimento artificial’ da praia. Como foi feito em Copacabana ou Camboriú”.

A Atafona de minhas férias juvenis, quando ganhei uma serenata, primeira e última, não existe mais como era. É tristemente famosa, em inglês e em francês, como a cidade engolida pelo oceano. Mas voltei a passear lá uma vez por ano. A memória afetiva é reavivada pela eterna “fresca” (os ventos locais) e pelas histórias contadas na Loja do Milagre dos Aquino. Atafona se tornou uma personagem íntima de vínculo e resistência.

NÃO HÁ PROTAGONISMO SOBRE ESCOMBROS

OG – 17.5.24 – VERA MAGALHÃES

A tragédia do Rio Grande do Sul é um epílogo de décadas de descaso com prevenção a desastres, com medidas recentes que retiraram recursos para dotar o estado de mais resiliência a intempéries, a despeito de o histórico e a situação geográfica sugerirem a tendência de que sejam recorrentes e severas, e com o afrouxamento do arcabouço ambiental que poderia reforçar a proteção a esses eventos.

O resultado é um estado destruído e submerso. Pensar que governantes possam cometer, além de todo esse histórico de erros, a bobagem de buscar protagonismo no manejo do caos é imaginar que sejam suicidas. Não costuma ser uma característica dos políticos. A cautela é necessária num momento em que não se tem a mais vaga ideia da quantidade de recursos e do tipo de ação que serão necessários para tirar o Rio Grande do Sul dos escombros.

A pasta extraordinária criada por Lula para centralizar os esforços federais, cobrar as demais pastas, tentar combater a burocracia para facilitar a chegada dos recursos e fazer a ponte com o governo do estado e as prefeituras é uma ideia que, se bem implementada, pode representar ganho em termos de agilidade e presença efetiva do governo central na unidade da Federação engolfada pelas cheias.

A desconfiança com que foi recebida a escolha de Paulo Pimenta para a missão decorre do temor de que a disputa política se sobreponha a esses objetivos concretos. Era previsível que um político com ligação com o estado fosse levantar a mão quando a ideia de criar o posto surgiu. Justamente por isso teria sido mais prudente da parte do presidente descartar essa possibilidade, destacando para a missão alguém com menos envolvimento político e emocional com o solo gaúcho.

Uma vez nomeado, cabe a Pimenta entender quão delicado é o momento. Como escrevi neste espaço na quarta-feira, a tragédia no Rio Grande do Sul pode representar para Lula uma avaliação definitiva de seu terceiro mandato, como a pandemia foi para Jair Bolsonaro —no caso do ex-presidente, foi um fator a definir sua derrota.

Caso se lance numa disputa política com o governador Eduardo Leite, Pimenta exporá Lula num estado que, a despeito do passado petista, hoje tem perfil eleitoral mais à direita, refratário ao partido. Seria insanidade imaginar que o posto avançado possa de alguma maneira “rivalizar” com o governo local na definição das prioridades e das políticas públicas para reconstruir o estado.

A ala mais moderada do PT acredita que, ao prontamente se colocar em campo com toda a equipe ministerial, em ação articulada com os demais Poderes, Lula percebeu a gravidade da tragédia gaúcha e entendeu que é preciso ter uma resposta local rápida e reposicionar seu governo no enfrentamento da emergência climática. A maneira como isso dialogará com outras prioridades da administração e com a velha, mas ainda hegemônica, visão de um Estado forte, indutor de pesados investimentos em infraestrutura, ainda é uma incógnita.

A tempestuosa troca de comando na Petrobras em meio ao caos é um desses momentos em que o discurso de reconhecimento da gravidade da crise ambiental será testado na prática: afinal, o que o governo decidirá sobre a exploração de petróleo na Margem Equatorial, com todo o impacto ambiental que trará e a oposição clara de Marina Silva e seu time à abertura de uma nova fronteira de extração de combustível fóssil vizinha à Amazônia? Como isso condiz com a necessidade de avançar de forma mais firme e rápida na transição energética, prioridade muito falada, inclusive na campanha, mas pouco executada? São esses os desafios reais do governo diante do colapso gaúcho. Num cenário tão adverso e imprevisível, a última coisa a pensar é em protagonismo. Até porque a chance de o protagonista neste filme ser o vilão, se não agir com sabedoria, é gigantesca.

TRAGÉDIA NO SUL É AMBIENTAL, MAS SOBRETUDO POLÍTICA

OG – 17.5.24 – FLÁVIA OLIVEIRA

Até onde a vista alcança, o Rio Grande do Sul é dor, destruição. E vontade de recomeçar. A tragédia socioclimática que engolfou o estado, além da extensão, trouxe de ineditismo também a agonia duradoura. O Brasil é país, infelizmente, íntimo de desastres naturais e crimes ambientais. Que o digam Rio de Janeiro e Minas GeraisSão Paulo e BahiaAmazonas e Santa CatarinaMaranhão e Pernambuco. A devastação se dá, iniciam-se os resgates, começa a limpeza, computam-se os prejuízos — quase nunca ressarcidos.

Desta vez, está diferente. Maio passou da metade, e a água que invadiu Porto Alegre segue muito acima da cota de inundação do Guaíba. Cidades às margens da Lagoa dos Patos ainda veem o nível subir. A chuva para e volta; a lama fétida persiste. É luto sobre luto. É vida que não encontra jeito de voltar ao normal — nem mesmo ao cotidiano transtornado depois do trauma. Tudo em suspenso.

Só quando a água baixar será possível calcular o valor das perdas materiais. Preliminarmente, o governo gaúcho estimou R$ 19 bilhões. O governo federal levantou R$ 60 bilhões em medidas de transferência de renda, antecipação de benefícios, garantia de crédito, juros subsidiados, suspensão de dívida, adiamento de tributos. Alcançam famílias, trabalhadores, empresas, prefeituras, estado.

Há uma pane logística. Ninguém é capaz de informar quando estradas serão devolvidas ou em que momento o aeroporto internacional de Porto Alegre estará apto a operar novamente. Um representante do setor de cerveja disse que 80 estabelecimentos em Porto Alegre estão sem condições de operar por destruição ou falta de demanda. Há pedidos de ajuda para vender e entregar noutras partes do país ou no exterior, para que a produção seja escoada. Preocupa a situação dos rebanhos e das lavouras do estado, o segundo mais importante do agro brasileiro, segundo o IBGE.

Cidades terão de ser, mais que reconstruídas, repensadas. Autoridades têm mencionado a urgência da recuperação, mas não há de ser nos velhos moldes. Fracassou o modelo que desmatou vegetação nativa, estrangulou rios, multiplicou monocultura, impermeabilizou solo. A catástrofe deveria ter varrido do mapa os negacionistas climáticos, que, em funções públicas ou milícias digitais, induziram populações a embarcar — de novo e sempre — no modo de exploração Brasil Colônia. Patrocinam um progresso que enriquece poucos e humilha todos.

A tragédia é humanitária, econômica, ambiental, mas sobretudo política. É do embate político franco, severo e firme — sem sutileza — que pode emergir um plano de adaptação às mudanças climáticas capaz de salvar brasileiras e brasileiros. Não tem cabimento, a esta altura, um vereador ocupar a tribuna para defender derrubada de árvores, como fez Sandro Fantinel (PL), em Caxias do Sul.

Enquanto o Congresso aprovava a lei complementar de alívio na dívida do RS com a União para financiar a reconstrução, a CCJ do Senado apreciava o projeto que cria normas para elaboração de planos de adaptação à mudança do clima. O texto, que vai ao plenário, recebeu votos contrários de dois dos três senadores do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro e Carlos Portinho, ambos do PL. Desconhecem que o estado que representam tem 75 dos 92 municípios classificados como suscetíveis a desastres climáticos, segundo o Cemaden. Hamilton Mourão (Republicanos), ex-vice-presidente e senador pelo RS, também votou contra.

A Defesa Civil gaúcha, até ontem, mapeara 584 dos 839 alojamentos com vítimas da catástrofe. Contara 45.799 pessoas em 74 cidades, cerca de 60% dos cerca de 77 mil abrigados. A composição dá a medida do desafio: mais de 11 mil famílias, 3.081 crianças de até 5 anos, 6.427 idosos, 1.568 pessoas com deficiência. Em 41% dos abrigos há gestantes ou puérperas; em mais de um terço, migrantes. Quilombolas e indígenas estão isolados em áreas igualmente devastadas.

A composição tão diversa dos necessitados sugere a complexidade da assistência. Não é por acaso que especialistas em políticas públicas e organizações sociais estão segmentando pedidos de doação. Além de comida e água, urgentes por muito tempo, idosos e crianças demandam fraldas; mulheres, absorventes; homens, lâminas e espuma para barbear; todos, escova e pasta de dente, sabonete e xampu.

Na volta para os lares que ainda existirem, há o esforço de limpeza. Correios pediram envio de material seco para facilitar o transporte aéreo; escolas de samba do Rio produziram rodos. O presidente Lula anunciou o vale de R$ 5.100 para reposição de móveis, eletrônicos e utensílios domésticos. As famílias precisarão lidar com aumentos de preços que habitualmente sucedem a tragédias. Do quilo do arroz aos terrenos, tudo encarece.

Muita gente já avisou que algumas localidades não abrigarão novas construções. Os deslocados climáticos — sob luto, trauma, risco de doenças, prejuízos financeiros e patrimoniais — arriscam perder também os territórios onde construíram a vida toda, alguns por gerações. Essa transição demanda cuidado extremo: a menor distância possível, a preservação dos laços comunitários e familiares, acomodação digna e serviços e equipamentos públicos de qualidade.

Medellín, na Colômbia, décadas atrás, gestou no urbanismo social um modelo de construção comunitária que estreitou laços entre vizinhos e cimentou confiança no setor público. Duas famílias compartilhavam uma mesma casa, enquanto a do outro era erguida em mutirão com assistência técnica. Conviviam e construíam, coabitavam e transformavam. A dignidade humana não pode se perder em nenhum momento da caminhada que começará. Já desviamos demais.

COM AS CASAS SUBMERSAS, GAÚCHOS IMPROVISAM BARRACAS E USAM CARRO COMO “ABRIGO” POR MEDO DE SAQUE

OG – 17.5.24

José Paulo Wainer consegue ver, de longe, ao menos um aspecto “menos pior” da tragédia que o deixou morando, desde o início da semana passada, em uma barraca improvisada na estrada que liga Porto Alegre ao município vizinho de Eldorado do Sul:

— Muitas casas desapareceram com o mar de lama. A minha, não. Ela só virou de lado.

A frase tem muitas leituras possíveis. Wainer, de 54 anos, enfrenta o frio com um chinelo de dedos, short de náilon, jaqueta leve e boné branco. Ele acredita que, quando a água baixar, iniciará um trabalho duro de limpeza e voltará a viver em sua casa, que colocará de pé novamente. Nem com o repique do Guaíba que aumentou o nível da água e a frente fria que jogou as temperaturas para 8 graus, cogitou ir viver em um abrigo. Da barraca ao lado, vigia a “casa que só virou de lado”, para evitar saques de posses, objetos e memórias que lá ficaram. E que ele também crê poder recuperar quando as águas partirem.

— Fazer o quê? A vida é assim. Estamos com os vizinhos, nossos bichinhos (três potros e um cachorro) e bebemos a água mineral que os voluntários trazem, lá do Gasômetro em Porto Alegre. Graças a Deus não perdemos ninguém, e quando a água baixar, começaremos tudo de novo, aqui ou, se for de fato impossível, em outro lugar — diz Wainer, que vive de bicos e havia investido suas economias na construção de um estacionamento nas imediações, em um terreno tomado pelas águas do Guaíba.

Ao longo da estrada, animais diversos (cães, galinhas, gansos, cavalos, bodes, carneiros) buscam os pontos mais altos para se abrigarem da água que tomou Eldorado por inteiro. A cidade de 41 mil pessoas desapareceu do mapa. Barracas espalhadas pelo que restou de acostamento mostram a quantidade de pessoas decididas a ali permanecerem. Se organizaram para fazer, durante o dia, rondas de barco para checar se não houve saque. E as embarcações que chegam com botes repletos de mantimentos e água, voltam, quase sempre, vazios para Porto Alegre.

Sobrevida com doações

Jaquetas do Grêmio, o casal Luís Carlos e Jane Maria Lopes se instalou em um viaduto de onde conseguem ver sua casa tomada pelas águas na Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre, a caminho de Eldorado, uma das áreas mais afetadas pelas enchentes da semana passada. Eles moram há mais de uma semana no carro que conseguiram salvar da enchente.

Luís Carlos e Jane Maria, com medo de saques no que restou de sua casa, passaram a viver no carro, no alto de um viaduto, de onde veem o imóvel —— Colocamos tudo o que podíamos no carro e daqui ficamos viajando. Daqui dá para ver o rio enchendo com o repique da chuva, por exemplo. Calculo que foram mais 10 centímetros, o que vai atrasar a recuperação, demorar mais para voltarmos para nossa casa, que está bem ali atrás — aponta Luís Carlos, para um conjunto de casas cercadas por carros cobertos quase até o topo.

Jane diz que não foi tão complicado se adaptar à vida no automóvel, pois “não tínhamos mesmo muita coisa”. E que não conseguiram se distanciar muito do lar por medo de que saqueadores levassem os pertences que lá ficaram.

— Ficamos de olho daqui, e, quando conseguimos um barquinho emprestado, vamos lá e pegamos mais coisas, aos poucos. O pessoal do Pôr do Sol (marina vizinha onde entram e saem motos aquáticas que ajudam nos trabalhos de regate na ilha) nos traz mantimentos, inclusive água e, quando a fome aperta, vamos comer com o pessoal que está morando nas barracas na beira da estrada. Tem um grupo de dez pessoas com quem fizemos amizade. E sempre tem um prato a mais — diz Jane.

“Amamos nosso canto”

O casal, de 67 e 61 anos, respectivamente, trabalhou a vida toda como caseiros da sede campestre do Grêmio, que se localiza na ilha. Os filhos são casados, moram longe, e eles decidiram não pedir ajuda ao clube campeão mundial de futebol. Ao fundo, apontam para o cenário de destruição, com uma das imagens mais impressionantes, a de uma Scania com a frente virada para um lado e o fundo para o outro.

— Quando a água baixar vamos voltar para a nossa casa, limpar tudo e seguir nossa vida normal. Amamos nosso canto, e não temos medo de outra enchente. Se acontecer tudo de novo, enfrentaremos e voltaremos para o alto do viaduto até tudo voltar ao normal. Essa foi a pior das enchentes que tivemos, e se sobrevivermos a esta, será menos pior na próxima — diz Jane, enfatizando, assim como José Paulo Wainer, o “menos pior” em um cenário de devastação total.

EDUARDO BOLSONARO GRAVA VÍDEO ENQUANTO PILOTA JET-SKY EM CIDADE INUNDADA

OG – 17.5.24

Após viajar para o Rio Grande do Sul na quarta-feira (15), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, gravou um vídeo no qual ele atravessa a inundação na cidade de Eldorado do Sul usando um jet-ski. A cidade foi uma das mais afetadas pelas chuvas que já deixaram 154 mortos no estado.

“Ainda que me acusem de fake news, seguirei mostrando a verdade. Você que decide se vai acreditar nos seus olhos ou naquela grande imprensa”, diz o deputado no texto da publicação.

O deputado vem sendo criticado pela publicação do vídeo nas redes. “Tudo por um filme”, diz um dos posts. “Eduardo Bolsonaro foi ao Rio Grande do Sul andar de jet-ski e fazer vlog”, diz outra publicação no X (antigo Twitter).

O deputado, na companhia do senador Cleitinho Azevedo (Republicanos-MG) e do influenciador Pablo Marçal, estão na lista de responsáveis por postagens apontadas pelo Palácio do Planalto como “fake news” relacionadas às chuvas no Rio Grande do Sul. O governo enviou um ofício ao ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, com um pedido de investigação sobre possíveis “crimes” cometidos pelos autores em conteúdos nas redes sociais.

Na quinta-feira, Eduardo Bolsonaro compartilhou um vídeo que mostra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) recebendo mensagens de apoio de voluntários que atuam no combate aos efeitos dos temporais em Gravataí, no Rio Grande do Sul. O antigo chefe do Executivo está internado há quase duas semanas com erisipela e dores abdominais. “Fica bem aí, se recupera”, diz um dos trabalhadores.

Carlos Bolsonaro também visita o Rio Grande do Sul

O vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, outro filho do ex-presidente, também foi para o Rio Grande do Sul na última quarta-feira ver de perto os danos deixados no estado. O prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Segabinazzi Siqueira, cidade atingida pelos alagamentos, recebeu o vereador e compartilhou em suas redes momentos ao lado do político.

Em um dos momentos os dois aparecem em uma área onde bombeiros trabalham fazendo buscas por desaparecidos. Em outra imagem, o vereador aparece ao lado do gestor municipal estudando um mapa do município. O filho do ex-presidente Jair Bolsonaro está no local das chuvas acompanhado do advogado do pai, Fabio Wajngarten.

A previsão é de que os dois irmãos se encontrem em Porto Alegre, ao final dos respectivos percursos.

UMA EM CADA 3 CIDADES BRASILEIRAS TEM RISCO DE DESASTRE CLIMÁTICO

OESP – 17.5.24

Um levantamento do governo federal mostra que pelo menos 1.942 municípios do Brasil estão localizados em áreas de risco recorrente para desastres climáticos como inundações, enchentes e deslizamentos de terra. O número, porém, ainda é subestimado, considerando que o documento lista, por exemplo, apenas 142 cidades gaúchas. Na tragédia que assola o Rio Grande do Sul neste momento, 450 municípios já foram impactados pelas fortes chuvas, segundo dados da Defesa Civil do Estado.

Os números constam de nota técnica da Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, órgão vinculado à Casa Civil. Eles se baseiam na base de dados do Atlas de Desastre e Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, que compilou eventos entre 1991 e 2022. Assim, não considera os desastres mais recentes provocados pelo clima, em especial no Sul do País.

Entre as localidades estão regiões como São Sebastião, no litoral paulista, que sofreu com fortes chuvas e deslizamentos em 2023, e Petrópolis, no Rio, que passou pelo mesmo problema em 2022. Atualmente, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) conta com equipamentos de monitoramento de chuvas em 1.133 municípios brasileiros. A previsão é de que eles sejam instalados nas 1.942 cidades listadas até o fim de 2027.

O documento que mapeia as cidades, segundo a Casa Civil, tenta atender a uma “necessidade de atualização da lista de municípios com evidências de maior criticidade quanto à ocorrência de desastres naturais relacionados ao clima”. A metodologia foi atualizada e passou a contabilizar localidades a partir dos seguintes critérios: ter óbito registrado relacionado a desastres entre 1991 e 2022; ter 10 registros, ou mais, de desastres entre 1991 e 2022; apresentar o número de 900 pessoas, ou mais, desalojadas/desabrigadas no período de 1991 a 2022; apresentar o número de 500 pessoas, ou mais, identificadas em áreas mapeadas com risco geo-hidrológico; apresentar alta vulnerabilidade a inundações, segundo o Atlas de Vulnerabilidade a Inundações da ANA (2014); apresentar 400 dias de chuvas, ou mais, acima de 50 mm, de 1981 a 2022, que corresponde a uma média de 10 dias por ano.

Nos 1.942 municípios mapeados vivem 148,8 milhões de pessoas, o equivalente a 73% da população. O dado, no entanto, não representa o total da população em risco, mas o total de moradores das cidades que possuem uma ou mais áreas com algum grau de risco para desastres ligados ao clima. No período de 1991 a 2022, essas cidades registraram 3.890 mortes em 16.241 desastres, o que deixou 7,9 milhões de desabrigados/desalojados.

A quantidade de pessoas em área de risco geo-hidrológico totaliza 8,9 milhões, de acordo com o documento. Na Bahia, o porcentual de pessoas em área de risco em relação ao total de moradores das cidades destacadas como vulneráveis chega a 17,3%, porcentagem que é de 13,8% no Espírito Santo e 11,6% em Pernambuco.

“Quando a gente pensa em qualquer plano, qualquer sistema, para reduzir o risco de desastres, a gente precisa ter um monitoramento. Aqui no Brasil os desastres são deflagrados por chuvas demais, que vão causar as enxurradas, as inundações, os alagamentos, as enchentes. Você precisa, obviamente, ter uma informação a priori, antes que o evento aconteça, para que vidas sejam salvas”, afirma Regina Alvalá, coordenadora do Cemaden.

“O Cemaden tem essa missão de monitorar e alertar, e quanto mais antecipado for o alerta emitido, mais ele pode ser útil lá na ponta, lá no município, (para) as defesas civis se prepararem, retirarem as populações daquelas áreas que são mais críticas para o impacto desses eventos e salvar vidas”, afirma ela. Apesar de menos de 1/5 dos municípios brasileiros terem equipamentos para monitoramento das chuvas, o Cemaden ressalta que todos os 5.568 são acompanhados por meio de um sistema de cruzamento de dados. Isso permite que o órgão faça alertas diários sobre riscos de chuvas mais fortes.

HISTÓRICO. O mapeamento de cidades sob risco começou a ser feito no início de 2011, após as fortes chuvas que atingiram a cidade de Teresópolis, na Região Serrana do Rio. Considerada a maior catástrofe de origem geo-hidrológica do Brasil, a tragédia provocou mais de 900 mortes e deixou pelo menos 350 pessoas desaparecidas, além de milhares de desabrigados. O impacto daqueles eventos impulsionou a criação de políticas públicas voltadas aos desastres climáticos, como a criação de um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNDC). O plano está previsto em lei federal desde 2012, mas até hoje não saiu efetivamente do papel.

“Um sistema de redução de riscos tem de contemplar outros eixos também. Então, os municípios precisam ter os seus planos de prevenção, os seus planos de preparação, os seus planos de contingência”, diz Regina Alvalá. “É o município que tem de saber onde estão as encostas para poder fazer obras de contenção, desassorear os rios, não deixar bueiro entupir, recolher lixo. Há várias ações estruturais e não estruturais que as Defesas Civis e os municípios devem priorizar como parte integrante de qualquer sistema de redução de riscos de desastres.”

REALOCAÇÃO. Em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, que foi cenário de uma tragédia em fevereiro de 2023, com a morte de 64 pessoas em deslizamentos de encostas após chuvas intensas, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) obteve liminar da Justiça para a remoção das famílias e demolição de 893 casas. A cidade tem 81,5 mil habitantes e cerca de 4 mil seriam afetados. A prefeitura conseguiu evitar o despejo em massa se comprometendo a realizar obras de proteção contra deslizamentos. A ação foi suspensa.

A decisão da Justiça implicaria total transferência da Vila Sahy, a comunidade mais afetada, onde 45 casas foram destruídas pelo desastre e não serão reconstruídas no mesmo local. Outros seis prédios foram demolidos por causa de avarias. Também foi autorizada a demolição de 197 moradias que foram desocupadas espontaneamente pelos moradores. Conforme os levantamentos mais recentes, apenas na Vila Sahy são 354 imóveis em risco muito alto e 34 em situação de alto risco.

Dois empreendimentos habitacionais vão atender 704 famílias. Outras 303 estão alojadas provisoriamente na cidade de Bertioga. Associações de moradores se opõem às transferências. Para reduzir o risco, a prefeitura investe R$ 193 milhões em obras de contenção, como barreiras de pedra conhecidas como gabiões, para frear deslizamentos. O pacote de obras emergenciais inclui sistemas de drenagem e contenção de taludes com placas e escada hidráulica para o escoamento da água.

Em Juquehy, outro bairro atingido, a prefeitura constrói um canal hidráulico com muro de gabião para direcionar as águas que descem dos morros. A catástrofe deixou também mais de 600 cicatrizes nas encostas da Serra do Mar. Em outubro do ano passado, o Instituto de Conservação Costeira (ICC), em parceria com a Atlântica Consultoria Ambiental e a multinacional Ambipar Group, iniciou um projeto de restauro ecológico das áreas florestais degradadas pelos deslizamentos espalhando biocápsulas de sementes com o uso de drones.

O ICC realiza ainda, em conjunto com a prefeitura, o programa São Sebastião Resiliente, que prevê, entre outras medidas, um cinturão de áreas de proteção ambiental e parques verdes para absorver a água da chuva.

NO RIO. Em Petrópolis, com 278,8 mil habitantes, um bairro com 245 casas foi demolido pela prefeitura depois das enchentes de 2022, que causaram deslizamentos e deixaram 235 mortos. O Morro da Oficina praticamente desapareceu, mas ainda há cerca de 70 mil pessoas vivendo em áreas de risco, segundo estudo do Ministério das Cidades, divulgado em fevereiro deste ano. As áreas em risco correspondem a 18% da área urbana. O número é superior ao apurado em 2017 pelo Plano de Redução de Riscos e Movimentos de Massa, que apontava 40 mil pessoas vivendo em 234 áreas de risco. Foram mapeados 27 mil imóveis, correspondendo a 10% da área urbana. Desses, 15,2 mil estavam em áreas de risco alto ou muito alto.

Depois de registrar enchentes e 775 deslizamentos de terra, em 2022, a prefeitura deu início a um processo de demolição das moradias em locais de risco, mas uma ação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro barrou o processo.

A Justiça entendeu que as demolições deveriam ser precedidas de notificação ao proprietário e estudo caso a caso. No caso do Morro da Oficina, a demolição foi autorizada pela Justiça por necessidade de realizar obras emergenciais de contenção da encosta, drenagem e proteção de moradias e edifícios públicos, entre eles uma escola municipal e um pronto-socorro.

As famílias recebem uma compensação financeira de até R$ 230 mil prevista no programa Recomeço Seguro. Em outros bairros, como a Vila Felipe, a prefeitura investe na construção de barreiras dinâmicas, sistemas de drenagem e demolições de blocos rochosos para prevenir novos desastres.

Petrópolis registra um histórico de desastres climáticos. Antes da tragédia de 2022, a maior já registrada, a cidade havia sido assolada por grandes inundações em 1966, com 80 vítimas, e 1988, com um saldo de 171 mortes. Em 2001, os temporais fizeram 51 vítimas; em 2011, os deslizamentos mataram 73 pessoas e, em 2013, foram 13 mortes.

RIO GRANDE DO SUL. O Estadão mostrou que ao menos quatro cidades que foram severamente atingidas pelas enchentes do Rio Grande do Sul planejam mudar parte da área urbana para fora da região sujeita a inundações. São localidades de pequeno porte, situadas em calhas de rios, e que enfrentaram de dois a quatro desastres naturais em menos de um ano.

Especialistas afirmam que outras cidades precisam seguir os exemplos de Barra do Rio Azul, Muçum, Roca Sales e Cruzeiro do Sul e não reerguer as estruturas destruídas no mesmo lugar. Para eles, com as mudanças climáticas, novas enchentes virão.

RECURSOS. Em nota, o Ministério das Cidades destacou que foi criado o “PAC Prevenção a Desastres, com investimentos previstos de R$ 11,7 bilhões”. “Na semana passada, na primeira seleção de Contenção de Encostas, foram anunciados investimentos de R$ 1,7 bilhão. Nas próximas semanas, será anunciado o resultado da primeira seleção de Drenagem, com investimentos de R$ 4,8 bilhões”, declarou a pasta.

“Em relação ao orçamento do Ministério das Cidades, vale ressaltar que o valor deixado pelo governo anterior para prevenção de riscos em 2023, antes da PEC da Transição, era de R$ 27 milhões, insuficiente sequer para manter as obras em execução. Após a PEC da transição, o orçamento de 2023 foi ampliado e, nesse exercício de 2024, primeiro orçamento do governo Lula, o valor alocado para obras de prevenção a desastres foi de R$ 636 milhões, montante que corresponde ao dobro da média do orçamento alocado nos últimos 6 anos”, acrescentou.

A reportagem consultou o Ministério do Meio Ambiente, que não comentou, e o da Integração e Desenvolvimento Regional, que encaminhou a demanda à pasta das Cidades. •

MP PEDE CONDENAÇÃO DE JORNALISTA AMEAÇADO COM ARMA POR CARLA ZAMBELLI

OG – 16.5.24

O Ministério Público de São Paulo (MPSP) pediu a condenação do jornalista Luan Araújo, que foi ameaçado com uma arma pela deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) em outubro de 2022. O promotor Roberto Bacal deu um parecer favorável à condenação do jornalista pelos crimes de injúria e difamação, em uma ação movida pela própria parlamentar.

A deputada diz que foi ofendida por Araújo em um texto publicado no portal Diário do Centro do Mundo, no qual ele conta sobre o episódio vivido em 2022, quando teve uma arma apontada em sua direção na Alameda Lorena, nos Jardins, em São Paulo. No artigo, ele escreve que Zambelli usou o episódio como “mais um espaço para fazer o picadeiro clássico de uma extrema-direita mesquinha, maldosa e que é mercadora da morte”.

Para o MPSP, “houve uma ofensa gratuita e dolosa contra a deputada” e o jornalista foi o responsável por causar a confusão que culminou com a parlamentar sacando uma arma na rua, pois ele teria “dirigido ofensas” contra ela.

“Verifico que houve um excesso de linguagem na matéria jornalística veiculada pelo querelado, pois tratam-se de acusações que, em tese, ferem a honra subjetiva e objetiva da querelante e, portanto, neste momento processual, ultrapassam os limites da narração crítica acerca de um desentendimento ocorrido entre as partes”, destacou o promotor.

O advogado Renan Bohus, que representa o jornalista, afirmou que ficou “estarrecido” com a conduta do Ministério Público porque houve “mudança de comportamento durante o processo”. O advogado destaca que, inicialmente, o promotor havia se manifestado no sentido de que a conduta não se enquadrava como crime, mas agora mudou o entendimento.

— O Luan também está muito preocupado, porque trata-se de uma segunda perseguição. A primeira foi com uma arma de fogo, e agora ele está sendo perseguindo juridicamente. Está trazendo um abalo emocional muito grande a ele. Quando o Luan profere aquelas palavras, em nenhum momento ele atenta contra a honra da Carla Zambelli, ele está falando da extrema-direita da qual ela faz parte — afirmou ao GLOBO.

TODOS ESTÃO SURDOS

OG – 16.5.24 – Paulo Celso Pereira

São exatos dois minutos de não diálogo que sintetizam nossa era. Em meio a uma tragédia de proporções bíblicas, um ministro entra em contato com o prefeito de uma cidade atingida e faz questão de filmar a ligação, colocada em viva-voz. Só que o gesto não é unilateral. Do outro lado da linha, o prefeito repete a mesma cena: ao receber a ligação de um ministro de Estado que poderia auxiliá-lo, coloca no viva-voz e filma toda a conversa.

Os dois não se escutam, e a solução da crise humanitária na cidade é apenas o pretexto para a ligação. O papel de ambos naquele teatro é proferir frases e reações lacradoras, gerando conteúdo para animar sua turba de apoiadores — e detratores — nas redes sociais.

O prefeito de Farroupilha é Fabiano Feltrin, empresário e cover de Elvis Presley que se filiou em março ao PL, num evento que contou com a presença de Jair Bolsonaro. O ministro, claro, é Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação do governo. Ontem Lula o escolheu para assumir o Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul.

Enquanto publicamente o presidente e o governador Eduardo Leite exibem relação republicana nas ações para superar a tragédia, a máquina de destruição de reputações segue a todo vapor logo abaixo da linha d’água. Ela não encontra barreiras ideológicas nem geográficas, mira políticos, jornalistas, servidores públicos civis e militares, até voluntários que auxiliam quem perdeu tudo.

Pesquisa Quaest divulgada nesta semana retrata outra face desse mesmo fosso em que nos metemos. Nela, 55% dizem que Lula não merece mais uma chance como presidente, mas 47% estão dispostos a votar nele em 2026 — ao menos 2% acham que ele não merece um novo mandato, mas podem votar nele caso a alternativa seja pior. Todos os quatro nomes com apoio de mais de 30% dos eleitores — Lula, Bolsonaro, a ex-primeira-dama Michelle e o ministro Fernando Haddad — são rejeitados por metade da população.

A polarização da sociedade brasileira se refletiu na tragédia do Rio Grande do Sul desde a busca por responsáveis pelos alagamentos — provocados, antes de mais nada, porque choveu em 17 dias 40% do esperado para todo o ano — até a patrulha sobre os motivos que levavam apoiadores do campo político oposto a estar mobilizados ajudando as vítimas.

O papel de coordenador da ajuda federal na tragédia obrigará Pimenta a despir-se da farda de general da propaganda para assumir as vestes de diplomata que deverá intermediar interesses do estado e dos muitos municípios — boa parte deles governados por prefeitos de oposição — que participarão da reconstrução. Em vez de atacar quem questiona o governo, o ministro, que durante a gestão Bolsonaro chegou a chamar o atentado sofrido pelo ex-presidente de “fakeada”, terá de baixar as armas.

A guerra por protagonismo ficou evidente na semana passada no drama vivido por Caramelo, o cavalo que se equilibrava sobre um telhado em Canoas. As primeiras imagens do animal surgiram na quarta-feira à tarde. A primeira-dama Janja Lula da Silva amanheceu no dia seguinte alardeando nas redes sociais a mobilização do Exército para o salvamento.

Nas horas que seguiram, as Forças Armadas exibiram ao vivo a mobilização de militares, caminhões e helicópteros para a operação. No entanto, minutos após partirem para a missão, a TV passou a exibir um pequeno grupo de bombeiros se aproximando do cavalo. Eles o colocaram num dos botes e navegaram até terra firme. Na corrida por Caramelo, o Corpo de Bombeiros de São Paulo chegou na frente. Coube ao secretário de Segurança Guilherme Derrite, bolsonarista da Rota que se orgulhava de “tirar vagabundo de circulação”, levantar o troféu nas redes.

Não muito longe de onde o cavalo foi salvo, dois outros cavalos, que ainda não haviam sido batizados por influencers, também tentavam sobreviver, com água até o pescoço, dentro de uma casa inundada. Quando a equipe de resgate chegou ao local, horas depois de Caramelo ser salvo, os dois estavam mortos. Nas redes sociais de Janja e Derrite, nem um story.