FILHO DE JOÃO CÂNDIDO, O ALMIRANTE NEGRO, ATACA COMANDANTE DA MARINHA POR CARTA CONTRA O PAI

OG – 29.4.24

Após o comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, se posicionar contra o projeto que inclui João Cândido Felisberto, o “Almirante Negro”, no livro oficial de Heróis da Pátria, o único filho vivo do líder da Revolta da Chibata disse que seu pai não era um herói da Marinha, mas sim “um herói do povo”. Adalberto Cândido, que se recusou a ler a carta de Olsen na íntegra, disse que o episódio de agora é apenas mais um capítulo da perseguição que sempre foi imposta a seu pai.

— Se fizesse um plebiscito, uma eleição para saber sobre o reconhecimento, ele (João Cândido) ia ganhar — afirmou Adalberto, o Candinho, de 85 anos, o caçula dos sete irmãos e morador de São João de Meriti, município onde seu pai terminou a vida. — Não quero que meu pai seja um herói da Marinha, ele é um herói popular. Quero que meu pai seja um herói do povo.

“Seu Candinho”, como é conhecido na vizinhança, disse que seus familiares precisaram lhe contar sobre a carta. Ele não teve coragem de ler o texto, que classificava a Revolta da Chibata, de 1910, uma rebelião liderada por João Cândido contra os castigos físicos sofridos pelos marinheiros, a maioria negros, como “episódio vergonhoso” e “deplorável”. Olsen ainda chamou os marinheiros participantes do movimento de “abjetos”.

— Meu pai está na história do país. Ele é conhecido internacionalmente. O que um oficial da Marinha representa perto do João Cândido? — questiona Candinho, que admitiu que não seria “cordial” em um suposto encontro com Olsen. — Deveriam agradecer aos marinheiros de 1910 pela Marinha que existe hoje.

O filho do Almirante Negro, eternizado com esse “título” em célebre canção de João Bosco e Aldir Blanc, e enredo do último carnaval da Paraíso do Tuiutí, diz que seu pai tinha perfil “reservado”, e não contava muito sobre o movimento que liderou. Candinho nasceu após a revolta, mas conviveu com os atos de perseguição, como a tentativa frustrada de seu pai trabalhar na Marinha Mercante, e também da proibição de instalação de um busto em homenagem em Porto Alegre (João Cândido nasceu no Rio Grande do Sul).

Expulso da Marinha em 1912 e após décadas de esquecimento, João Cândido teve sua imagem resgatada a partir do livro “A Revolta da Chibata”, de Edmar Morel, lançado em 1958, conta Candinho.

— Meu pai sempre foi perseguido. De 1910 a hoje a Marinha mantém rancor, um ranço danado contra meu pai. Porque não achavam que marinheiros teriam capacidade em organizar aquele movimento, e pelas mortes ocorridas no confronto — afirma Candinho, que relembra do racismo que ditava a instituição. — Não tinha disciplina e hierarquia. Os pais colocavam os filhos rebeldes na Marinha e os oficiais eram filhos de fazendeiros. Teve a Lei Áurea, mas a escravidão continuava na Marinha. O único filho do Almirante ainda luta pela obra de um museu na cidade em memória à luta do pai. No ano passado, Candinho participou de uma reunião para construção da Casa de Memória Marinheiro João Candido, projeto da Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro (Funarj) com a prefeitura de São João de Meriti. Apesar dos esforços, o projeto segue engavetado:

— Continuamos na luta pelo seu reconhecimento.

Ato de apoio dos autores do projeto

Nesta sexta, os deputados federais Lindbergh Farias e Benedita da Silva, do PT, visitaram Candinho em um ato de resposta ao movimento da Marinha. Enquanto senador, Lindbergh foi autor do projeto de lei para inclusão de João Cândido no livro de Heróis da Pátria. O projeto foi aprovado no Senado e agora tramita na Câmara, onde Benedita é relatora.

Lindbergh, que chamou as declarações de “agressivas'” e “completamente sem sentido”, pediu retratação ao comandante e marcou uma audiência com o ministro da Defesa, José Múcio, por causa do caso. O deputado ainda lembrou que no primeiro governo Lula já houve homenagens a João Candido, como a inauguração de uma estátua e nomeação de navio no Porto do Suape.

— Sinceramente nos pegou de surpresa tamanho a contundência, acho que ele perdeu a oportunidade de ficar calado. Falar em “abjetos marinheiros” e “fatos nefastos da história” 114 anos depois. Caiu como uma bomba, porque João Cândido é herói da resistência do povo negro. Por isso é tão importante colocar ele formalmente escrito como herói nacional — afirmou o deputado petista, que lembrou que o antecessor de Olsen, o almirante Almir Garnier, foi acusado de ter oferecido apoio a Jair Bolsonaro em uma suposta tentativa de golpe. — Em um momento de reconstrução democrática, uma nota como essa destoa completamente do que quer o Brasil e o presidente Lula.

A expectativa dos petistas é que o projeto seja aprovado na Comissão de Cultura. Em seguida, antes do plenário, o desafio será a Comissão de Constituição e Justiça, presidida pela deputada bolsonarista Caroline de Toni (PL-SC). Relatora do projeto na Câmara, e aniversariante do dia, Benedita da Silva destacou que João Cândido sequer tinha ligações partidárias, à esquerda ou à direita. Portanto, a homenagem não deveria sofrer retaliações políticas.

— Queremos que ele seja reconhecido como herói da Pátria porque ele representou naquele momento uma liderança em um contexto de naturalização da violência e tragédia. Não existe achar natural levar cem chicotadas como parte da disciplina, né? Nós temos contado todas as histórias, de todos os momentos do Brasil, por que não podemos contar a do João Cândido ?

Anistiado por Lula

Em 2008, durante a primeira gestão de Lula, a Lei 11.756 concedeu anistia póstuma a João Cândido, um reconhecimento formal das injustiças sofridas pelo Estado brasileiro, ao decretar que a revolta foi uma ação contra a opressão e pela dignidade humana. A lei declarou Cândido e os outros participantes da Revolta da Chibata como “anistiados políticos”.

No mesmo ano, uma estátua do Almirante Negro foi inaugurada, na Zona Portuária do Rio, em um evento que também teve a presença de Lula, no Dia da Consciência Negra. Dois anos depois, o então presidente também participou da cerimônia que batizou um navio da Petrobras de João Almirante, no Porto de Suape (PE).

A luta pela inclusão de João Cândido no livro dos heróis da Pátria não vem de hoje. Títulos semelhantes já foram semelhantes pela prefeitura de São João de Meriti e pelo governo do Rio. Um primeiro projeto federal foi feito pelo então deputado Chico D’Ângelo (PDT), mas o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL) liderou a oposição contra a medida. Na época, o Ministério Público Federal (MPF) defendeu a homenagem e inclusive reparação financeira à família, pois ele teve benefícios militares privados.

A revolta da Chibata

A Revolta da Chibata aconteceu em 1910, quando marinheiros, liderados por João Cândido, se revoltaram após um deles ser castigado com 250 chibatadas. Eles tomaram o navio e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro. João Cândido redigiu uma carta na qual os revoltosos exigiam dos comandantes o fim dos castigos. Após a revolta, João Cândido ficou conhecido como Almirante Negro ao conseguir a promessa de abolição dos castigos corporais, mas foi expulso da Marinha junto com outros envolvidos.

Décadas depois, a luta do “Almirante Negro” foi reconhecido em livros, músicas e atos políticos. Lançada em 1974, a música “Mestre-Sala dos Mares” eternizou a história de João Cândido. Apesar da alteração da letra — de “almirante negro” para “navegante negro” — por força da censura da ditadura militar, a composição de João Bosco e Aldir Blanc, gravada por Elis Regina, glorificou uma história até então maculada pelos donos do poder:

“Salve o navegante negro. Que tem por monumento as pedras pisadas do cais”, cita o refrão.

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